ônibus urbano com filtro Impressionista.
©Lecy Pereira Sousa
Era uma daquelas tardes comuns em Contagem. Hora do rush. Ponto de ônibus naturalmente lotados de gente louca para chegar em casa. A avenida João César de Oliveira, no bairro Eldorado, como de costume, vestia-se de lentidão (percebam o caráter poético dessa crônica).
Eu e você decidimos acompanhar o roteiro de um ônibus de uma determinada linha coletiva.
Dizer que aquele ônibus estava lotado seria uma forma de demonstrar falta de imaginação.
A viagem seguia entre o tedioso e o retardado. Você e eu sabemos que a regra é a linha de ônibus transportar mais passageiros em pé que o permitido por lei. Sabemos também que desrespeitar leis é uma espécie de esporte nacional. Ninguém melhor que o saudoso Millôr Fernandes para dissertar sobre esse tema.
A certa altura da viagem, uma moça em torno dos seus dezoito anos sacou... seu aparelho celular cor de rosa, fez uma ligação, aguardou um momento e começou a falar como se estivesse numa feira ao ar livre. Antes de passar à fala, eu e você nunca compreendemos porque as pessoas transformam os ônibus em consultórios de psicanálise abrindo o coração e soltando o verbo. A moça disparou:
- Fabinho, onde você está? O quê? Num churrasco com seus amigos? A nem véi, como é que pode um negócio desses. Eu aqui, em pé, dentro de um ônibus lotado, voltando do serviço e você num churrasco? Que vozes de mulheres são essas, Fabinho? A nem, viu. Bem que minha mãe falou que você não merecia confiança nenhuma. Você aí na maior curtição. E esse funk de sexo explícito que eu estou ouvindo, Fabinho? Ai, que ódio! O quê? Você me ama? Com essa safadeza que eu estou ouvindo aí? Que gemidos são esses, hein, Fabinho? Que gritos de “minas chapadas” são esses aí? Ah, nem... Eu voltando do trabalho, ralando como vendedora numa loja de roupas, enquanto você fica em festa com um bando de vadias, Fabinho? Você acha que eu mereço uma coisa dessas? Sabe, eu acho que minha mãe está certa. Ela bem que tentou abrir os meus olhos sobre você. Seu cachorro! Eu aguentando esse ônibus todos os dias, nem hora de almoço direito eu tenho. Sou quase uma escrava na loja. Fico em pé o dia inteiro. Sacrifico um tanto de coisas...
De repente, o ônibus faz um barulho de que vai estragar e começa a parar lentamente. O motorista olha para trás e diz: - Infelizmente não vai dar pra seguir viagem, não, pessoal. Deu pane no motor.
Foi a conta para que alguns passageiros esbravejassem:
- Que carniça. Todo dia essa benção estraga no meio do caminho.
-Me ajuda aí, motô. Eu preciso jantar!
Vendo que não poderia continuar esculachando o rapaz, a moça disse:
-Tá vendo, ordinário, o ônibus quebrou. Eu vou ter que descer. Eu vou desligar aqui, mas assim que eu entrar em outro ônibus a gente continua. Você acha que eu vou te deixar no bem bom? Pode saber, vai ter troco!
Dessa maneira, eu e você decidimos que não pegaríamos o mesmo ônibus que ela para não sabermos como aquele papo terminaria. Melhor seria imaginarmos.
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